O céu fica cada vez menor em São Paulo - pensei, enquanto
andava pela Rua Álvares Penteado na sombra fria dos prédios. Olhava pra cima, esperando
ver o sol daquela tarde de verão, que aparecia somente como um reflexo no vidro
das janelas fechadas. Na esquina da Rua da Quitanda - em frente ao Centro
Cultural Banco do Brasil - ele finalmente apareceu inteiro no céu, porém irradiava
em somente um reduzido pedaço do chão. Imaginei como devia estar um calor
agradável no topo daqueles prédios - em comparação ao frio no cânion que se
formava entre eles -, e onde eu caminhava. Ao quase tropeçar numa tampa de
bueiro solta, tornei a voltar minha atenção à calçada, e apertei o passo para
chegar ao meu destino: um bar próximo ao Pátio do Colégio. Eu havia descido do
ônibus no final da Avenida 9 de Julho, e de lá seguia a pé pelo centro antigo,
confiando no meu instinto para achar o lugar.
No Pátio do Colégio – apesar de ser domingo -, um pequeno grupo
de estudantes do ensino fundamental fazia fila junto a duas jovens professoras para tocar o sino preso ao arco no canto do pátio. Pela primeira vez reparei na
gravação do sino: O som do século XXI.
PAX. Natal 2000. Murmurei isso baixinho enquanto lia, e um policial passou
ao meu lado em direção à unidade móvel da polícia militar, parada do lado
oposto da rua. Um homem de aparência macilenta que dormia enrolado num cobertor
velho no chão - ao lado do monumento da Glória
Imortal aos Fundadores de São Paulo - levantou o tronco repentinamente.
Olhou o movimento à sua volta: as crianças, as professoras, o policial, e eu; e
então voltou a deitar-se. Poucos perceberam seu movimento, pois ele não era o
único deitado ali no chão - onde, descobri depois, fora a prefeitura de São
Paulo de 1765 a 1912. Pelo menos outras quinze pessoas dormiam - ou tentavam fazê-lo
- ali.
Eu sabia que o meu destino estava a poucos metros, então dei
uma volta pela calçada oposta ao pátio para ver se localizava o tal bar numa das
ruas adjacentes. Enquanto fazia isso, concluía meu pensamento de que muito
pouco havia mudado ali - da catequização forçada dos índios que ocorrera a
quatrocentos e cinquenta anos, até os dias de hoje. Digeri, em silêncio, o
absurdo de que a maior evolução nesse período foi cobrir tudo de concreto, sem
que nada na superfície tivesse sofrido uma mudança concreta de fato. O marco inicial da
cidade de São Paulo – pensei por fim - representava bem essa cidade de
paradoxos.
Cheguei ao bar que procurava, enfim, e, depois de algumas
horas de conversas gritadas por sobre a mesa, copos de cerveja gelada, e calor
humano, eu estava novamente caminhando sozinho no frio da rua. Ofereceram-me
uma carona, que por algum motivo não aceitei. Pensei que seria fácil pegar um
ônibus na Avenida 23 de Maio, se eu atravessasse a Praça da Sé e chegasse próximo
à Liberdade. Mas acabei preso às ruas do centro, andando entorpecido e em
círculos por caminhos que desconhecia. Não sabia onde tinha errado, mas quando
comecei a ficar preocupado, cheguei novamente ao Pátio do Colégio. Àquela hora,
no começo da noite, o pátio já se encontrava iluminado, e era um lugar
realmente bonito sob a luz de amarelo âmbar. Um casal - de chineses, eu presumi
- tirava fotos e sorriu pra mim quando eu passei. A essa altura eu já tinha
decidido que faria o mesmo caminho da ida, já que não tinha a competência necessária
pra andar cinco quadras sem me perder.
Vi-me então andando novamente na Rua Álvares Penteado, mas
dessa vez - no começo da noite, e com algumas cervejas na cabeça - a rua
parecia ter voltado no tempo. As lojas de departamento já estavam fechadas, e os
detalhes das fachadas iluminadas dos prédios antigos saltavam aos olhos. Os
sacos de lixo na rua brilhavam cobertos de uma fina garoa, e um senhor de idade
me ultrapassou pela esquerda usando um chapéu de feltro verde-escuro e
sobretudo marrom. Fiquei feliz de estar ali, caminhando a pé. Um momento
daqueles não poderia ocorrer dentro de um automóvel. E, como se alguém soubesse
como eu estava me sentindo, completou o cenário ressoando o som de uma gaita
baixinho pelo ar. Era um blues. Um blues de Sonny Boy Williamson II -
estranhamente reconheci - de um disco do Muddy Waters que eu já havia escutado
uma dezena de vezes.
O som da gaita ficava mais claro conforme eu caminhava, e, chegando
à esquina do Largo do Café, imaginei que iria encontrar o gaitista num dos
bares e restaurantes que se espalham em mesas no meio da rua por lá. Pelo repertório
escolhido e a forma de tocar, podia até imaginar um homem velho e negro - de
chapéu e terno, talvez - tocando de olhos fechados como era idiossincrático dos
bluesmen norte-americanos. Mas aquele
som era tão manso e suave, que logo que o barulho das pessoas no Largo do Café
aumentou, desapareceu gradativamente - como uma rádio saindo da área de alcance
das ondas de transmissão. Olhei à minha volta enquanto passava entre as mesas
na rua - procurando a origem do som - e nada. O garçom também não soube me
ajudar, disse que não havia mais música naquele horário. Enfim, o blues havia
ficado pra trás de mim - na rua que eu acreditava estar completamente vazia - e
não no Largo do Café. Pensei em voltar e verificar, mas estava cansado. Segui à
esquerda e cheguei ao Vale do Anhangabaú, de onde finalmente voltei pra casa.
Seis meses se passaram desse dia, até que eu voltasse ao
centro de São Paulo. Foi no dia 17 de agosto, às dez horas da manhã, quando
passei por dentro da Estação da Luz em direção à Praça Júlio Prestes. Eu havia
me comprometido a buscar uns ingressos na bilheteria da Sala São Paulo, e,
saindo de lá, passei na frente da antiga estação de trem Júlio Prestes, onde
atualmente fica a Estação Pinacoteca. Ali, me sentei num dos bancos de concreto
- na sombra - pra conferir e guardar os ingressos que eu ainda segurava na mão
quando saí da bilheteria. Enquanto fazia isso, o trânsito de carros na Rua Mauá
– que estava à minha frente - parou por um instante devido ao semáforo fechado,
e eu pude ouvir o som de uma gaita muito baixo - porém muito claro - trazido pelo
vento.
Imediatamente me lembrei daquela caminhada noturna próxima
ao Largo do Café, de alguns meses antes. Pois novamente era Sonny Boy Williamson
II – concluí. Porém, dessa vez, a música não era do Muddy Waters, e sim a
autoral Bye Bye Bird. O som vinha sem
direção, simplesmente parecia sair do nada, das paredes, do chão; do próprio
ar, talvez. Olhei pela janela para dentro da antiga estação, e depois para toda a rua
e as janelas dos prédios, mas não encontrei a origem daquele blues. Por mais
alguns segundos, o som quente e gordo pairou no ar, até ser destroçado - com a
abertura do semáforo - por duas motos seguidas de uma corrente de carros.
Permaneci imóvel no banco, aguardando que o semáforo fechasse novamente, o que
pareceu levar uma eternidade. Precisava escutar mais um pouco daquele som, descobrir
quem o tocava, mas, quando o trânsito finalmente parou novamente, eu já não ouvia mais
nada. Inclinei o tronco pra trás, de forma a encostar as costas na parede, e
tomei um susto ao ver que havia um cachorro sentado ao meu lado no banco. Eu
estava tão compenetrado, que nem havia percebido. Ele me observava atento. Era
pequeno, e tinha o pelo todo emaranhado e cinzento, o que parecia uma espécie
de camuflagem para a cidade fosca.
Levantei-me pra ir embora, e então em volume alto e claro
escutei a introdução de Hoodoo Man -
música interpretada na gaita originalmente por Junior Wells. Durou por poucos
segundos, assim como a introdução da canção original, mas o som parecia tão
próximo, que estremeci. Me virei pro cachorro cinzento, que se virou pra mim, e
nos entreolhamos desconfiados. “Essa é a versão do Buddy Guy” - eu disse em voz
alta ao cachorro, que, parecia a mim, podia entender. Uma mulher jovem que
passava perto de mim abraçou a bolsa contra o peito e apressou o passo. Tomei
conhecimento de que parecia loucura, mas voltei a sentar no banco, e fiquei ali
mais algum tempo. Tempo suficiente para que o cachorro desistisse e fosse embora,
me lançando um último olhar desconfiado.
Tanto tempo se passou após esse segundo evento, que cheguei
a apagá-lo completamente da memória. Salvo por algumas vezes em que puxei entre
meus discos um de nome Good Morning,
Schoolgirl. O vinil de péssima qualidade que comprei há cerca de dez anos
num sebo - uma coletânea de gaita blues -, continha a música de Sonny Boy
Williamson II que dava nome ao álbum, em uma gravação da época, que
infelizmente estava riscada no meio. Aliás, boa parte desse disco estava
riscada, o que me obrigava a escutá-lo em pé ao lado do toca discos, para
reposicionar a agulha sempre que a mesma começasse a pular. Resisti a jogar
esse disco fora por diversas vezes no passado, mas finalmente tive a sensação
de que o havia resgatado naquelas condições do sebo por um motivo, e precisava
guardá-lo. O disco servia como uma memória daqueles eventos misteriosos
ocorridos no centro de São Paulo.
Há cerca de um mês e meio, fui ao centro novamente
acompanhado por um velho amigo, e sem motivo específico. Pensei em comer um
bauru no Ponto Chic do Largo do Paissandú, e depois ver se a feira de artes da
Praça da República continuava ativa. Talvez eu comprasse algo. Era sábado, e eu
tinha tido uma pequena desavença com minha namorada. Resolvi então sair de casa
um pouco, de forma a fazer com que o tempo atropelasse mais rápido aquele
desentendimento efêmero. Eu comentei do ocorrido com meu amigo, enquanto saíamos
do Ponto Chic - onde deixamos uma pequena fortuna por quase nada -, e seguimos conversando
até a Rua Barão de Itapetininga, onde, desatentos, dobramos para o lado errado.
Chegamos - não intencionalmente - ao Viaduto do Chá, ao invés da Praça da
República. Continuamos andando e conversando, e, do outro lado do viaduto,
parei numa chapelaria e comprei uma boina que vi na vitrine. Curiosamente, fui
atendido de forma muito profissional por um garoto de cerca de onze anos, pois,
aparentemente, não havia nenhum adulto na loja.
Botei o pé na calçada - com a nova boina já cobrindo o
crânio -, e escutei à distância uma versão de Got My Mojo Working tocada num ritmo acelerado e frenético na
gaita. Mas dessa vez o som não estava disperso no ar. Ele vinha - quente e
gordo - de trás de um grupo de pessoas que estavam a alguns metros de distância,
na esquina com o Viaduto. Fiz um sinal com a cabeça para meu amigo - que já
havia se adiantado na outra direção -, de que iria até lá conferir a música.
Ele não mostrou interesse. Conforme eu andava em direção ao som, ia associando
cada vez mais aquele estilo agressivo e encorpado de tocar, com o que eu havia
escutado na Rua Álvares Penteado e na Estação Júlio Prestes. Era, sem sombra de
dúvidas, o mesmo gaitista. O músico invisível do centro de São Paulo.
Ao chegar perto pude ver por entre as pessoas, sentado em
uma cadeira, um homem velho e negro de chapéu e terno, tocando com os olhos
fechados. Era o clássico bluesman que
eu havia imaginado tocando em meio às mesas do Largo do Café naquela noite em
que o escutei. Cada peça de roupa, cada ruga, expressão e fio de cabelo, eram do
homem que eu havia visualizado na minha mente ao ouvir o som da gaita. Os pelos
do meu corpo se arrepiaram, e por algum motivo me senti como se estivesse vendo
um fantasma. Quando o homem parou de tocar, abriu os olhos, e, sem levantar a cabeça,
bateu a gaita com os orifícios de sopro pra baixo na sua perna, de forma a
tirar a saliva. Pensou por um ou dois segundos, e começou outra música, que me
pareceu com James Cotton.
Ele estava no meio da música, quando meu amigo reapareceu ao
meu lado segurando algum tipo de eletrônico, porém não consegui prestar atenção
no que ele me mostrava nem no que dizia. Em algum momento ele insistiu para
irmos embora, mas eu sugeri – sem sair da hipnose que a música me proporcionava
- que ele fosse comprar duas latas de cerveja ali perto, e ficássemos por ali mais um pouco. Ele aceitou prontamente, e logo voltou com as cervejas.
Assim que acabou a dele, ele se despediu de mim e foi embora - pois tinha um
compromisso, disse. Afastei-me um pouco das pessoas, e sentei numa mureta
lateral com a lata de cerveja já quente e pelo meio. O dia começava a escurecer
lentamente, e as pessoas, como vampiros ao avesso, começavam a voltar às suas
casas - ao som de Howlin’ Wolf.
Quando percebeu que não havia mais ninguém o assistindo, o gaitista
parou, e permaneceu sentado imóvel por algum tempo. Então ele me percebeu - sentado
ali na mureta - com o canto dos olhos. Virou a cabeça na minha direção, e abriu
um sorriso de porcelana tão branco que intimidou o começo de noite em São Paulo.
Notei que ele não tinha alguns dos dentes laterais, o que explicava a forma não
convencional de tocar - ele praticamente enfiava a gaita inteira dentro da boca
- causando um grande efeito sonoro e visual à apresentação. Tirou os olhos de
mim, e olhou pra caixa da gaita que estava à sua frente, cheia de moedas. Voltou
a olhar pra mim e em seguida pra caixa cheia de moedas por mais duas vezes, de
forma a frisar suas intenções de forma quase cômica. Havia um misto de calma,
ingenuidade e malícia em seus modos - tanto de agir, como de tocar - que era
claramente o resultado de um domínio das ruas, além do domínio de sua arte.
Quando me levantei da mureta pra me aproximar, lembrei que não
tinha nenhuma moeda na carteira. Somente uma nota de cinquenta reais. Parei na
frente dele, absorto no dilema de dar ou não todo dinheiro que tinha em mãos,
quando ele falou olhando para o horizonte além da ponte: “I didn’t charge you
the two other times”¹. Confuso, botei a nota de
cinquenta na caixa da gaita, e no que eu abri a boca para perguntar
algo - que nem eu sabia o que era -, as luzes dos postes se acenderam iluminando
a rua em um amarelo âmbar - como haviam feito há tempos atrás no Pátio do
Colégio. No mesmo instante, o homem colocou a gaita na boca e começou a tocar.
Louisiana is where my
town was in Louisiana era onde ficava minha cidade
In that place, I was crowned, you see Veja só, naquele
local eu fui coroado
After all, something changed in me Afinal, algo mudou em mim
Lost it all to the whirling wind Perdi tudo ao turbilhão de vento
:I was born again, six feet
deep: :Eu renasci a seis pés de profundidade:
After all was swept to the ground Após tudo ser varrido ao chão
I found myself walking south Me vi caminhando para o sul
Where they don’t get my sound Onde não entendem o meu som
And I had to make it underground E tive que
me virar no subterrâneo
:I was born again, six feet
deep: :Eu renasci a seis pés de profundidade:
There’s no wind under
the street Não há vento debaixo da rua
The police don’t get
to hassle me A
polícia não pode me importunar
Where I’m alone,
that’s where I’ll be Onde posso ficar só, é onde vou ficar
Being underground is being free Estar
subterrâneo é estar livre
:I was born again, six feet
deep: :Eu renasci a seis pés de
profundidade:
Após um longo solo de gaita - que de tão lento e intenso,
pareceu alterar o ritmo natural de tudo à minha volta -, o homem tirou a gaita
da boca. Novamente ele virou a gaita com os orifícios para baixo e a bateu
contra a perna. Não havia ninguém próximo a nós, mas ele fez um sinal para
alguém em algum lugar à distância, agachou ao lado da caixa da gaita no chão, e
começou a guardar as suas coisas. Perguntei onde ele costumava tocar, como ele
sabia que eu já o havia escutado antes, se ele tinha nome, e de quem era aquela
última música - cujo autor não identifiquei. Em resposta, ele só riu e
continuou a arrumar a caixa da gaita e a guardar o dinheiro. Do meio do nada,
apareceu uma moça com uniforme de garçonete - a quem ele deu uma mão cheia de
moedas -, e ela levou embora a cadeira sobre a qual ele poucos minutos antes tocara
sentado.
“Nice meeting you, sir”² - disse ele, segurando a ponta do
chapéu com a mão, e com o mesmo sorriso de porcelana no rosto. Fiz um sinal de
reconhecimento com a cabeça, satisfeito - e desapontado ao mesmo tempo, pela
falta de respostas -, e fui embora também. Um cachorro pequeno com o pelo cinza
todo emaranhado passou por mim, enquanto eu seguia pela frente do Teatro
Municipal em direção à Avenida São João. Eu havia parado o carro numa rua próxima,
mas acabei perdido nos meus pensamentos, e, quando vi, já estava subindo a
escada de acesso ao Viaduto Santa Ifigênia. Havia começado a garoar, bem fino,
e as pastilhas que decoram o chão do viaduto formaram uma espécie de espelho
d’água sob a luz dos postes. Uma estátua-viva desistiu de sua imobilidade, e
saiu correndo em direção a um toldo.
Apoiei o corpo na grade que separa o viaduto da queda sobre a
Avenida Prestes Maia, e vi na Praça do Correio - a algumas dezenas de metros de
distância - o tal bluesman parado, com
sua caixa numa mão e a gaita na outra. Três moças usando vestidos coloridos
passaram correndo pela praça, procurando abrigo da garoa. Então, o homem olhou
para os lados, e na certeza de estar completamente sozinho, tirou com
dificuldade a tampa solta de um bueiro. Sentou-se com as pernas para dentro do
mesmo, e logo desapareceu pelo buraco - segurando a gaita presa entre os dentes. Suas mãos reapareceram,
e puxaram a tampa até que ela fechasse completamente o bueiro sobre a sua cabeça.
¹ “Eu não te cobrei das outras duas vezes”
² “Foi bom te conhecer, senhor”