Os dedos congelam ao guidão. As orelhas azulam no frio da manhã. O vento me abraça por debaixo dos braços, atravessando a blusa de lã.

Seria desagradável, se não fosse perfeito.

Olho pros carros andando metros, distantes centímetros. Enquanto quilômetros de janelas pretas separam motoristas sentindo milímetros.

E de lá de dentro, o asfalto que me cedem é buraco, pedra e poça.

Pra mim é pouco.

Faço espaço. Como quem se espreguiça numa cama sob o lençol preso por todos os lados. Como pés em sapatos apertados.

São Paulo não tem trânsito. São Paulo é trânsito. Mas chega de tratar aqui o trânsito como objeto direto, trânsito é verbo. Transitamos todos. Sábios e tolos.

Nesta manhã em particular, transito no frio e faz sol. E me serve bem esse sol frio. Uma promessa de temperaturas melhores. Às vezes, bastam as promessas. Já me aquecem por dentro, essas.

O orvalho da madrugada desperta o perfume dos eucaliptos. E outras árvores pelo caminho brilham suadas nas calçadas. Às vezes me estendendo uma mão com poucas folhas, e me dando um tapa molhado no braço. Sereno, eu passo.

Chego ao meu destino-endereço. Desço ao estacionamento e da bicicleta. Subo pro trabalho. Quinze andares.

E a vida fica me esperando lá embaixo, presa numa grade.

São oito da manhã, e já é tarde.





o silêncio mata o som
         sem dó e sem bemol
o som mata o silêncio
                   lá
         numa chacina em sol




trinto e nada sinto;
setento a parecer
morno e calmo; minto
por dentro; explodo
todo.
absorvo mudo, tudo.
absurdo tudo,
mudo.





Eis que, andando pela rua, encontro uma lista de afazeres.

Escrita num papel de anotar recados telefônicos, o papel por si só - com marca d’água pra hora e nome - é uma pequena raridade. Em tempos de smartphones e tablets, alguém mantém ainda um bloco de papel ao lado do telefone - fulano ligou. Telefone Fixo. Do tempo em que as pessoas marcavam compromissos com uma semana de antecedência e compareciam, ao invés de enviar uma desculpa constrangedora por SMS em cima da hora.

Dobrado cuidadosamente, um pequeno mapa do cotidiano de uma pessoa. Quem perde um papel na rua certamente não planeja tê-lo lido por um intruso. Não respeito. Leio. Uma lista de afazeres. Às vezes, tão pessoal quanto uma carta de amor.

Enfim; letra pequena, de fôrma. Tinta azul.

Buscar calça. Que beleza! Já começamos pela moda. Imagino que calça seria. Muito curta, comprida demais, larga no cinto, apertada talvez. Ou seria uma calça nova? Talvez um presente, visto a data comemorativa que se aproxima. Bom, quem quer que tenha escrito essas palavras, com certeza não se opõe ao uso de calças. Isso tenho certo.

Cortar o cabelo. E por que não? Uma bela aparada nas madeixas, um tapa na gafurina. Afinal, hoje é sexta-feira. Como encarar um fim de semana tranquilo, sem suprir as necessidades capilares antes? Me espanta tal atividade depois de buscar calça, visto que deveria ser da maior importância. Escrito no bilhete com outra caneta – vejo pela tinta – está o número 2. Duas horas talvez. São quatro e dez agora. Cabelo cortado.

Banco. Claro, afinal de contas, cortes de cabelo não são grátis, muito menos calças (ou ajustes nestas). E todos temos contas.

Rodrigo. Mistério da lista. Seria o amante da fogosa dona de casa que carregava a lista em sua Yves Saint Laurent furada? O amigo com o qual o portador da lista tinha uma grande dívida, que começava a incomodar a amizade de anos? Quiçá o avô em estado terminal desta pessoa de letra pequena, que esperava ansiosamente uma visita para revelar-lhe um segredo de família. Enfim; permanece o mistério.

Carvão. Aí sim. Temos algo concreto. Em uma sexta-feira como essa, em que os postos de gasolina empilham sacos de carvão - junto com placas de TEMOS GELO - em frente às lojas de conveniência prontas pra explorar os transeuntes, nada mais clássico. Sete quilos, provavelmente. Ou talvez quatro. Coisa pequena. Só os mais chegados.

Pedir desculpas p/ Dri. Certo. Pra não deixar ressentimentos. Compartilho por um segundo do sentimento do redator arrependido. Admiro o ato - ainda mais dessa forma - planejado. Está lá - irrevogável – escrito em tinta azul no papel branco. O arrependimento documentado. Como um assunto de estado, protocolado. "Vim pedir desculpa" - pede o ser de cabelos cortados e calças novas, parado à porta recém-aberta.

E a lista acaba por aí. Na vertical, alguns números rabiscados. Seis pra ser exato.

Talvez um jogo da mega-sena.

Rasgo a parte onde estão escritos os números, e jogo o resto do papel no lixo.

Talvez eu jogue também.