Era 31 de agosto de 2027. Logo de
manhã - após duas semanas de confusão e protestos - foi finalmente decretado ‘estado
de defesa’ na cidade e no estado de São Paulo. Em transmissão oficial, o
presidente da república falou ao lado da governadora e do prefeito sobre o que
chamou de ‘grave ameaça à ordem pública e à paz social no estado de São Paulo’,
e, na sequência, uma apresentadora informou a suspensão de alguns dos serviços
públicos, o transporte coletivo sendo o mais crítico. Feriados foram decretados
em algumas cidades do interior, sendo facultativo - porém incentivado - que
empresas localizadas na cidade de São Paulo também dispensassem seus
funcionários por alguns dias. Muitas empresas já haviam parado suas atividades
dias antes, incapazes de continuar. O anúncio do governo tardou a sair, e de
nada resolveu a situação, senão a tornou mais absurda. Protestos violentos que
cresciam a cada dia tomavam destaque na cidade cada vez mais calma e deserta.
Já não se viam mais as filas quilométricas nos postos de gasolina – ‘a nova
corrida pelo ouro’, segundo os telejornais -, e as ruas repletas de carros da
capital foram tomadas pela gente descrente de que o impossível havia acontecido.
As últimas reservas de combustível haviam acabado
em São Paulo. E não só na cidade de São Paulo, como também em vários pontos do estado.
Alguns poucos caminhões-pipa traziam o combustível necessário para ambulâncias
e outros serviços básicos, vindos de outros estados onde o racionamento era
crítico, mas ainda estável. O mercado clandestino também esgotava suas reservas
rapidamente, e os pequenos caminhões e carros sem placas que circulavam com
galões e tonéis de gasolina pela cidade se tornaram cada vez mais raros, chegando
ao ponto em que mesmo a polícia não tentava mais impedi-los. Segundo a polícia,
havia um saldo de mais de cento e trinta postos de gasolina destruídos na
cidade de São Paulo. Isso foi capa dos jornais no dia 01 de setembro. A matéria
do jornal mais popular mostrava uma foto de uma viatura de polícia parada em
frente a um posto cujas bombas foram arrancadas do chão, e ainda se via o
cartaz de papelão colado no poste: ‘GASOLINA: Não temos / ÁLCOOL: 29,99 /
DIESEL 21,99’. A viatura de polícia na foto também estava sem placa.
As estradas, principalmente as que ligam a capital
com o sul do Brasil ou as que seguem para Minas Gerais, estavam paradas desde o
dia 24 de agosto, e sempre que possível, os telejornais mostravam fotos do
enorme estacionamento a céu aberto em que haviam se tornado. Alguns donos de
carros ainda dormiam dentro de seus automóveis, mas poucos tinham algum
combustível sobrando que os pudesse levar a algum lugar caso o trânsito fosse
desobstruído. Outros carros haviam sido abandonados, e começavam a sofrer os
danos desse abandono: pneus roubados, vidros quebrados, e portas arrombadas.
Não só nas estradas, mas também nas marginais dos rios Pinheiros e Tietê - entre
outras vias de grande fluxo - o fenômeno se repetia. Sendo nos bairros e vias menores, em menor escala. Mas havia carros parados em todo lugar.
Como era de se esperar, o preço das passagens
aéreas explodiu. Com capacidade reduzida de destinos devido à falta de
querosene de aviação, e a desculpa da queda de demanda para voos com destino a
São Paulo, as companhias aéreas ofereciam passagens de São Paulo com destino ao
Rio de Janeiro a R$ 3.500,00 o trecho, e com destino a Fortaleza a R$ 7.000,00
o trecho. Nessas duas cidades, a escassez de gasolina e diesel ainda não havia
atingido níveis tão críticos.
Enfim, o que aconteceu com o suprimento de
combustíveis em São Paulo era resultado de diversos fatores naturais e políticos. Em 2021,
com o avanço da exploração de petróleo nas camadas mais profundas do oceano, especialistas
descobriram que havia oito vezes mais petróleo nas bacias subterrâneas do que o
que fora calculado e divulgado antes de se iniciarem as perfurações. Houve
grande comoção do governo devido ao fator financeiro desta descoberta, porém, com a
crise mundial, a exportação do petróleo não seria rentável, visto que o saldo
da exportação de petróleo cru contra a importação de petróleo refinado seria
desfavorável. Desta forma, foi instaurada uma lei que obrigava 100% das
empresas situadas em território brasileiro a comprem petróleo de refinarias
nacionais. A oferta do petróleo cru, a princípio, atenderia a demanda com
grande folga. O problema era que a qualidade do petróleo cru que estava sendo
explorado era muito pior do que a do petróleo importado, problema que demandaria
um grande investimento em infraestrutura e tecnologia para ser resolvido. As
empresas privadas às quais foram vendidas as concessões das bacias subterrâneas
- da extração ao refinamento –, após diversos escândalos e fraudes largamente
divulgados na imprensa, não trabalhavam com infraestrutura suficientemente
segura. Boa parte das obras das refinarias havia sido superfaturada e
construída fora das especificações, o que gerou problemas diversos, culminando
na explosão de uma torre de destilação em Santos, onde o petróleo parcialmente
evaporado a 370 graus Celsius matou doze pessoas e deixou mais uma dezena de
feridos. Após esse incidente, muitas refinarias foram fechadas. E a capacidade
das dezenove refinarias que funcionavam de forma segura, não atendia mais o
mercado nacional, principalmente em alguns pontos cruciais onde o consumo era
muito alto. O governo não divulgou para a população nenhuma medida para
solucionar o problema, mas sabia-se que a importação, após muitos embates do
governo com refinarias estrangeiras, não seria uma opção.
Após a transmissão oficial do dia 31 de agosto de
2027, grandes mudanças ocorreram na cidade, uma delas sendo a forma de se
trabalhar. Muitas indústrias adotaram soluções temporárias, contratando somente
operários - por tempo determinado - que morassem próximos às fábricas. Os
turnos também foram reduzidos, de forma que os operários pudessem sair para
almoçar, visto que o suprimento de comida em grandes quantidades ainda era um
problema. Os escritórios, em sua maioria, permitiram que os funcionários
administrativos trabalhassem em casa, utilizando a internet e o telefone.
Reuniões eram feitas através de conferências em vídeo, quando se faziam
necessárias. Para os comércios de rua e os restaurantes, a situação foi mais
crítica. Alguns comerciantes foram obrigados a fechar as portas ou focar somente
no comércio local, pois locais como as avenidas Faria Lima e Paulista tiveram
uma drástica queda de transeuntes. Restaurantes, em grande parte, fecharam
devido à escassez de alimentos.
Também um dia após ser decretado ‘estado de defesa’
em São Paulo, o CEAGESP foi saqueado, assim como inúmeros supermercados pela
cidade. A polícia pouco fez a respeito, e justificou as demoras em atender as
denúncias dizendo que ‘não havia a infraestrutura necessária para a ação de
seus homens’. Nos dias seguintes, a polícia militar adotou a estratégia de formar
grupos de patrulhamento a pé com no mínimo dez policiais por grupo, e, nos
poucos casos em que agiu, agiu brutalmente e fez poucas apreensões. Poucas
viaturas ainda circulavam pelas ruas, sendo substituídas em parte por cavalos. O
conselho de Defesa Nacional estudava se era caso para o envio das forças
armadas.
Enquanto muitos se desesperavam com o caos e a
sensação de estarem ilhados - como se ao lhes tirarem o combustível, lhes houvessem
tirado a própria mobilidade - alguns poucos lentamente descobriam novas
formas de se locomover e subsistir. Alguns dias após o decreto oficial - transmitido
pela televisão e rádio, e reproduzido impresso nos jornais -, pessoas começaram
a se organizar e replanejar suas vidas. Como a calmaria que segue à tempestade,
um crescente senso de comunidade floresceu em muitos pontos da cidade. Uma
repentina empatia entre vizinhos, amigos, e conhecidos, começou a gerar
soluções locais para algumas das principais necessidades básicas.
Uma dessas soluções foi a criação dos comboios de
ciclistas. Com a falta de combustível, o uso da bicicleta se tornou –
naturalmente - massivo. O comboio de ciclistas servia para que as pessoas não
tivessem que se locomover sozinhas pela cidade, criando maior segurança para
que crianças e idosos pudessem também utilizar a bicicleta no seu dia-a-dia,
sem medo de assaltos, e ajuda no caso de acidentes. Foram definidos pontos de
encontro pela cidade, onde as pessoas poderiam aguardar com suas bicicletas e
adentrar o grupo assim que ele passasse. As rotas haviam sido pré-definidas, e
eram basicamente inspiradas nas principais rotas de ônibus, além de rotas
específicas para escolas – pois as aulas não haviam sido suspensas. Ao mesmo
tempo em que pessoas deixavam o comboio quando chegavam ao seu destino, novas
pessoas juntavam-se a ele ao longo do percurso. A rota era sinalizada pelos
próprios ciclistas, que gritavam o destino final do comboio ao passar pelos pontos
de encontro.
Após alguns dias, foi até criada uma rota para o
litoral, que saía todas as sextas às 17h, passando por Santos, Guarujá e São
Vicente, e voltava no domingo até o terminal Jabaquara do metrô. Foram feitas
muitas campanhas independentes de doação de bicicletas, que, por incrível que
pareça, geraram grandes resultados. Houve também a tentativa de formar comboios
de skates, patins, cavalos, e tudo mais que se possa imaginar, mas nenhuma teve
tanto sucesso quanto o comboio de ciclistas. O skate, porém, teve um grande
papel no deslocamento urbano de curta distância, pela sua facilidade de ser
carregado e guardado. Alguns skatistas mais experientes se reuniam para dar
aulas a iniciantes na marquise do parque Ibirapuera e na Avenida Paulista,
cerca de duas vezes por semana. O objetivo, muito mais do que o esporte, era
ensinar a utilizar o skate como meio de transporte na cidade.
Logo que perceberam que os combustíveis começavam a
se tornar escassos, alguns grupos bem intencionados começaram também hortas
comunitárias. Porém essas hortas logo se tornaram um fracasso. Durante os
primeiros dias de caos, muitas pessoas se aglomeraram em supermercados e pagaram
preços exorbitantes para comprar e estocar alimentos em casa, enquanto outras pensavam
em formas alternativas de conseguir o alimento de forma mais digna e simples.
As feiras livres praticamente desapareceram, e o abastecimento dos
supermercados foi drasticamente reduzido devido às dificuldades de transporte.
Muitos produtores de outros estados - e alguns do interior - ainda se
arriscavam entregando sua produção para transportadoras que transitavam pelas
estradas que não estavam bloqueadas, e chegavam a São Paulo carregando galões de
diesel extra para garantir sua volta. O problema maior acabou se tornando a
distribuição na cidade, e não a chegada dos alimentos do interior e outros
estados a São Paulo. Passadas algumas semanas, a maioria dos produtores acabou
optando por fornecer para outras cidades, enquanto alguns simplesmente perderam
sua produção. Durante esse tempo de escassez de alimentos, quase não se via
carne, e mesmo os produtos básicos como arroz e feijão estavam com preços
inflacionados ao absurdo. Foi nesse cenário que se proliferaram os tais projetos
de hortas comunitárias. Com o objetivo de plantar legumes e verduras em
conjunto com outros moradores em áreas comuns como parques e praças, logo as
hortas se tornaram alvo de discussões e polêmicas. Muitas pessoas que não
haviam contribuído para uma dada horta passaram a colher nela, o que gerou
desconforto entre os moradores, e, principalmente, a desilusão dos idealizadores
do projeto.
Após o fim da maioria das hortas comunitárias em
espaço público, porém, muitas pessoas inspiradas no sistema haviam começado
suas próprias hortas em casa, ou com amigos e vizinhos. Com as hortas em menor
proporção, e com menos pessoas participando, o sistema pareceu funcionar razoavelmente
bem. Com um pouco de paciência e ajuda da primavera que se aproximava, era
possível colher Rabanete e Rúcula em duas semanas, e Nabo e Abobrinha em menos
de cinco semanas. Infelizmente, a grande maioria da população paulistana não
aderiu à prática - cobrando soluções exclusivamente do estado para os problemas
causados pela falta de combustíveis -, e acabou por alimentar-se somente de
alimentos não perecíveis, que, por volta de 20 de setembro já chegavam
diariamente a São Paulo em comboios de caminhões do exército. Os integrantes
das hortas, por outro lado, além da alimentação orgânica, incrementavam cada
vez mais o plantio com alface, tomate-cereja, brócolis e couve-flor, que no
meio de novembro já estavam no ponto para serem colhidos.
Outro fenômeno interessante ocorreu nesse período
de exiguidade, basicamente gerado pelo fato de que as pessoas saíam agora nas
ruas sem estarem fechadas em seus automóveis. Pouco a pouco, vizinhos começaram
a se ver e a se reconhecer no bairro. E, com o aumento na frequência desses
cumprimentos - no início somente educados -, surgiram pequenas e grandes amizades.
Observava-se claramente uma necessidade de conversar sobre a situação e
compartilhar informações. Logo que um morador de um prédio descobria um bom
local para comprar ovos frescos por um preço justo, por exemplo, já
compartilhava tal informação com os outros moradores de seu prédio e até com
desconhecidos nas ruas. Havia uma crescente necessidade de socializar, e com
isto, os espaços públicos antes exclusivamente reservados para carros –
avenidas, ruas - começavam a ser utilizados para reuniões e até pequenas
festas. Os moradores da cidade que não haviam ido embora cada vez mais se
contentavam em passar os finais de semana na própria vizinhança. Não raro,
surgia algum convite para o almoço ou jantar na casa de um recém conhecido
antigo vizinho. Refeição que quase certamente era retribuída. Aquela carne
moída de patinho, que fora conseguida a duras custas num supermercado lotado, e
congelada por dois meses como se fosse uma iguaria, finalmente era saboreada e compartilhada.
As ruas vazias e estacionamentos, após serem usados
pelas crianças e jovens durante o dia para a prática de esportes ou
simplesmente para a vagabundagem, frequentemente eram palco de
confraternizações organizadas pela vizinhança nas noites de sábado e tardes de
domingo. Na impossibilidade de visitar parentes no interior, ou de ir descansar
na praia, os paulistanos acabavam por encontrar-se mais com amigos próximos –
em distância e afinidade. Às vezes, acontecia de um amigo de um amigo de algum
conhecido aparecer de bicicleta em alguma dessas festas, segurando uma garrafa
do vinho português Quinta do Noval
que estava guardado há gerações esperando por uma ocasião especial. A escassez
de bebidas alcoólicas desenterrava tantas dessas garrafas - de uísque, vinho,
champanhe - guardadas para ocasiões especiais, que no final de setembro um
coletivo até criou uma festa chamada ‘Ocasião Especial’ que acontecia todas as
quintas-feiras dentro do túnel Ayrton Senna na Avenida Vinte e Três de Maio.
E assim passou o tempo, até o dia 28 de dezembro de
2027, quando, numa tarde calma e de clima ameno, os primeiros caminhões-pipa
chegaram a São Paulo trazendo as primeiras levas de combustível, que - de
acordo com a transmissão oficial do governo - voltava a ser produzido e
entregue em níveis normais.