“Mas que grande pouca vergonha!” - exclamava o doutor Cícero
Ramos por debaixo de seu bigode preto, enquanto abria caminho pelo meio da multidão
de mulheres - e de homens vestidos de mulher - que seguiam o bloco carnavalesco
do Zé Maria no centro da cidade. O
doutor considerava-se um intelectual, e achava que aquele cantar e dançar
embriagado que se dava nos quatro dias de carnaval, nada mais era do que uma
grande bobagem. “Viadagem! Putaria!” - resmungava a todos que o pudessem ouvir,
enquanto andava a passos largos em direção à entrada da estação de trem. Usava
roupas sóbrias dignas de um defunto: terno preto, camisa branca, sapato preto
de sola gasta, e uma gravata azul escura tão apertada que precisaria afrouxá-la
caso quisesse virar a cabeça por algum motivo. Não que as mulheres dançando
cobertas de purpurina, confetes e serpentina, pudessem de alguma forma chamar-lhe a atenção. O doutor era um homem casado sob os olhos de Deus desde que se lembra como
gente.
“Trabalhar esses putos não
querem!” - disse ao segurança da estação, que se surpreendeu com tal afirmação
num dia de feriado nacional. O doutor Cícero não acreditava nessas bobagens de
feriados e dias de descanso. Acreditava sim, que o trabalho era a locomotiva do
país, e trabalhava aos sábados, domingos e feriados, sempre com um sorriso no
rosto e se sentindo gratificado pela atividade que exercia: era advogado.
Como advogado, lia e relia tudo o quanto era lei e artigo, e os seguia ao pé da
letra, sem margem para nenhum tipo de interpretação. “A lei é a lei” - dizia a seus filhos, que mal começavam a dar os seus primeiros passos. “Se
não houvesse lei, viveríamos numa balbúrdia sem tamanho! Vejam vocês, a desordem
pela qual passei hoje na rua, voltando de um árduo dia de trabalho” – dizia a
seu filho mais novo, que escutava atento enrolado em sua fralda – “mulheres
dançando lascivamente, homens bebendo descontroladamente, música ensurdecedora,
e o pior: aquelas marchinhas - todas de duplo sentido - sendo cantadas por
meninos e meninas de idade ginasial!”. A esposa de doutor Cícero - respeitável e
virginal dona-de-casa - escutava da cozinha os resmungos do marido e concordava
com tudo. “Lembra-se de Saulo Batista, querida?” – ele perguntou a ela, sem
esperar resposta - “Estava lá dançando no meio do povo, embriagado e vestido de
mulher. Imagine só, que quando comecei a Faculdade de Direito, éramos colegas.
Depois o malandro largou os estudos, e foi dedicar-se à maracutaias junto ao tio.
Nem na igreja apareceu mais, pecador duma figa!”.
De fato, no exato momento em que
doutor Cícero o crucificava, Saulo Batista dançava embriagado pelo terceiro dia
seguido, atrás do pequeno caminhão encarregado de levar a banda de marchinhas.
No primeiro dia de carnaval, fora vestido de branco, o que achou adequado para
seguir o Bloco do Ovo. No segundo
dia, aproveitou a fantasia de pirata para beber seis doses de Rum antes do
meio-dia. E, finalmente, na Terça-Feira Gorda vestiu-se de mulher – com direito
a maquiagem e tudo – e foi dançar no bloco do Zé Maria no centro da cidade. Saulo nem percebera o doutor Cícero -
seu antigo colega de faculdade - atravessar o bloco naquele fim de tarde, pois
estava de conversa com uma morena de pernas longas, sorriso largo e fantasia de
enfermeira. Ele praticamente não pregava os olhos durante o carnaval inteiro. Da sexta-feira à Quarta-Feira de Cinzas, seguia direto na rua festejando, com
direito somente a algumas paradas para tomar um drink com os amigos e jogar o
sagrado carteado.
O carteado era algo muito importante na
vida de Saulo. Talvez a única coisa mais importante que as festas, as mulheres e a bebida.
Desde menino, ele tinha aprendido com o tio as técnicas do pôquer, e frequentava
bares e casas clandestinas de jogo para tentar ganhar algum dinheiro. No
colegial, já tinha seu próprio negócio de tráfico de maços de cigarro na
escola, e vendia bilhetes de loteria falsificados para os professores. Quando
entrou na faculdade, já era conhecido pela cidade inteira - ou pelo menos, pelo
submundo dela - e tinha fama de malandro bom pagador, o que o ajudou a
financiar diversos negócios lícitos e ilícitos. Resolveu largar os estudos após
sair da prisão, onde ficara preso para prestar esclarecimentos sobre um negócio de
bingo eletrônico de seu tio. Após esse incidente, dedicou-se somente ao limpo e
honesto negócio dos leilões de imóveis. O tempo livre que lhe sobrava, usava
para o jogo – o que já incluía, além do carteado, as brigas de galo -, para as
festas, as mulheres, e as bebedeiras.
O doutor Cícero, por sua vez, não
bebia e prezava por uma vida saudável e sem exageros. Talvez por isso a comoção
da cidade ao saber de sua morte em plena Terça-Feira Gorda de carnaval. “Como
assim, morreu?” - perguntou sua sogra ao ser informada pela filha em prantos –
“O homem nem vivia!”. O médico veio às pressas, e constatou que o incólume
homem havia morrido engasgado. “Uma castanha de caju na goela. É por essas e
outras que eu sempre janto com uma cervejinha ao lado, pra descer a comida.” –
disse. “Foi aquela gravata apertada” – disse um vizinho folião que espreitava
pela janela – “Pelo menos o puto já está vestido pro enterro”. O velório foi um
grande fiasco. Em pleno carnaval, apareceram somente alguns parentes por mera
obrigação, e alguns membros da igreja que vieram para confortar a esposa –
agora, viúva. O caixão com o corpo ficou na casa até a Quarta-Feira de Cinzas,
visto que o coveiro e o administrador do cemitério se encontravam no baile e
não era possível tirá-los de lá. No momento em que o padre chegou à casa para
fazer as últimas orações ao finado, no final da tarde, um bloco passava na rua
a cantar: “Pode me faltar o amor / Há, há, há, há! / Isto até acho graça / Só
não quero que me falte / A danada da cachaça!”. A essa altura, se o finado
doutor estivesse vivo, já estaria resmungando a torto e a direito. Mas o homem
já estava noutra.
Após o engasgue fatal, que o fez cair de
cara na mesa, doutor Cícero levantou-se e viu o próprio corpo morto ali sobre a
toalha de estampa florida. Pela porta da cozinha, viu que a esposa continuava a
lavar a louça em silêncio, e que seus filhos – de demasiada pouca idade para
entender o que se passava - ignoravam a fatalidade. Ele tentou falar, mas a voz
não saiu, e de súbito, sentiu uma tontura forte e seus olhos foram tomados por
uma claridade cirúrgica. Aquilo durou alguns segundos, e, quando voltou a
enxergar e retomou o equilíbrio, não estava mais em sua sala de jantar. Sabia
de alguma forma que estava em sua casa, mas não estava mais sentado à frente de
seu filho e de seu prato de jantar. No lugar do filho, havia um crupiê usando um colete vermelho, e no lugar do prato, uma roleta. O crupiê indicou o fim
das apostas – somente doutor Cícero estava à mesa – e girou a roleta. A bolinha
girou e girou, e antes que a roleta parasse completamente, caiu no número 19. Uma
multidão atrás dele explodiu em gritos de alegria, e, quando ele se virou
assustado, viu um largo salão de baile repleto de mesas de jogo, por onde
inúmeros garçons de bigode fino e gravata borboleta passavam com bandejas de
bebidas, e mulheres para todos os gostos – altas, gordas, morenas, negras,
magras, loiras, baixas, orientais – desfilavam em trajes ínfimos por entre
tipos malandros e foliões.
O crupiê então lhe empurrou uma
montanha de fichas pretas com um rodinho, e deu uma piscadela para o doutor:
“Bem vindo!”. Desconcertado, o doutor se preparava para perguntar onde estava, quando uma banda de fanfarra irrompeu no salão com trompetes, tubas, e
tambores, e todos começaram a dançar. O crupiê, notando seu desconforto,
indicou lhe uma porta que ele reconheceu como sendo de sua cozinha, e nela
entrou. Sua cozinha, ao contrário da sala de jantar, continuava idêntica. Salvo
pelo fato de sua esposa não estar debruçada sobre a pia, e uma dezena de
músicos, poetas e vagabundos em geral estarem a se revezar para clamar sonetos,
dodecassílabos, e redondilhas pelos cantos, entre um copo de uísque e outro. Ao
notarem a presença do doutor no sarau clandestino, todos o cumprimentaram
efusivamente com brados de que proclamasse um de seus belos poemas. O doutor -
que quando em vida sempre tivera as artes como perda de tempo e inutilidade -
como por força sobrenatural, teve sua cabeça inundada por versos, métricas,
ritmos e cores. E, pela primeira vez na vida – neste caso específico, morte –
teve vontade de proclamar um poema, o que fez ante olhares emocionados, que
logo se converteram em altos aplausos. Por dentro, porém, o doutor não entendia e repudiava
aquilo tudo.
Saiu em direção à porta que dava
para o seu quintal, mas ali não havia mais quintal, e sim outro salão com um balcão
longo que circundava toda a sua volta, e detrás do qual intercalavam-se barmans e
máquinas de chopp. No centro, haviam duas dúzias de mesas de sinuca. Doutor
Cícero se aproximou do balcão e sentou em uma das banquetas. Ali a música era
mais baixa, e as pessoas pareciam mais calmas, o que possibilitou a comunicação
com o barman à sua frente: “Amigo, onde eu estou exatamente?”. O barman se
aproximou e virou o cardápio – uma página encapada em plástico duro que estava sobre a mesa – para
revelar o nome do bar em seu verso: ‘Éden’. “Pode relaxar, senhor!” – disse sorrindo
– “Tome umas bramotas geladas, você merece!”. O barman abriu uma geladeira onde
havia inúmeros rótulos de cerveja, olhou por algum tempo, pegou uma, e serviu
ao doutor em uma taça gelada. “Isso não pode ser o céu! E essas pessoas bebendo
cachaça, jogando dados e vadiando pelos cantos? E essa música profana, as
mulheres trajadas como prostitutas, o dinheiro fácil? Só pode ser o Inferno! Eu
fiz algo de errado?” – doutor Cícero disparou enquanto afastava de si a taça de
cerveja – “Onde está Deus?”.
Um silêncio fez-se na sala,
exceto por um bêbado que cantava num canto usando um socador de caipirinha como
microfone. “A que Deus você se refere?” – perguntou o barman - “Aqui temos um
sistema rotatório de atividades de liderança, e todas as decisões são tomadas
em conjunto por uma comitiva organizada, onde todos tem o mesmo poder de
decisão”. Um confuso doutor Cícero reformulou a pergunta: “Então, quem foi o
responsável por me enviar pra cá?”. “Você mesmo, oras! Veja bem, senhor: aqui
não tem nenhum líder, ninguém manda em ninguém, ninguém é responsável pelo
destino de ninguém. Se você está aqui, foi resultado de suas próprias ações.
Você merece, tome aqui essa gelada!”. “Eu não quero nada disso” – disse o
doutor, contrariado – “Não é assim que me disseram que funciona. Cadê as
harpas, cadê as nuvens?”. “Tem um clube de jazz logo ali, e uma charutaria logo
ao lado. Serve?” – perguntou o barman. O sangue do doutor já estava em ponto de
ebulição, mas ele fitou o barman por alguns segundos, e viu que ele não estava
de brincadeira. Seu semblante parecia realmente de alguém preocupado em ajudar.
“Quanto tempo será que preciso ficar nesta espelunca?” – pensou em voz alta. O
barman apontou novamente para o cardápio, e doutor Cícero leu com mais calma o
nome completo do bar: ‘Éden – Drinks por toda a eternidade’. Ele pegou a taça
de cerveja e deu um gole. Era boa.
Descobrindo suas crenças serem
todas farsas, o doutor tomou naquela noite pela primeira vez na vida – retifico
novamente: morte - um porre. Bebeu seis cervejas antes de deixar o bar
acompanhado pelo barman, para irem juntos às corridas de cavalos, onde
multiplicou o valor que ganhara de fichas pretas na mesa de roleta ao chegar.
Apostou num cavalo indicado por um malandro com o qual dividira uma garrafa de
uísque antes de entrar no jóquei. O
malando vivia por ali a vender palpites de apostas, e contara que o tal cavalo era
um azarão, mas que havia um boato de que correria como um louco aquela noite. E
de fato o fez, levando os espectadores ao êxtase quando - na última volta - foi
da penúltima à primeira posição, como que possuído por uma força sobrenatural.
A banca de apostas quase foi à falência: era uma probabilidade de cem pra um.
Em comemoração, seguiram o doutor, o barman e o malandro para o grande salão de
baile, onde dançaram ensandecidamente enquanto pagavam rodadas de uísque para
os poetas e músicos que vinham da cozinha juntar-se à festa, e recebiam beijos
e carinhos das mulheres cobertas de purpurina que se derretiam com o trio
dançante. No ápice dos festejos, o mesmo crupiê de colete vermelho que o havia
recepcionado apareceu, e pelo meio do solo de cavaquinho, disse: “Senhor, houve
um engano”.
Doutor Cícero desconfiara de tudo
desde o início, é claro, mas não imaginava a explicação que seria dada a seguir
pelo crupiê, num canto mais vazio da cozinha: ”Doutor, não era o senhor que
deveria ter morrido hoje, foi tudo um grande equívoco. Este não é o seu céu. O seu
céu ainda nem foi planejado. Este céu pertence a um tal de Saulo Batista”. O
doutor sentia um misto de alívio e tristeza, enquanto o crupiê lhe explicava os
procedimentos a serem seguidos para corrigir o desentendimento. “Pedimos
desculpas pelo incômodo,” – disse o crupiê – “mas nessa época de carnaval na
terra, nossa equipe acaba se confundindo. Tudo será resolvido em poucos
minutos”. Antes que o doutor pudesse dizer ou pensar qualquer coisa, uma
tontura o levou pelo meio de uma luz alva de volta ao seu corpo, que deitava num caixão em sua sala de estar. Levantou-se e viu a sala à sua volta vazia, exceto
por sua esposa que dormia no sofá. “Putos!” – pensou - “Nem aqueles que chamo
de amigos me vieram fazer a sentinela fúnebre!”.
Olhou pela janela a rua quieta da
manhã de Quarta-Feira de Cinzas, e sentiu a obrigação de ir ter com Saulo
Batista, para lhe precaver de sua morte. Largou a esposa dormindo, e tomou a rua
à procura do futuro falecido. Caminhava pensando no que ocorrera aquela noite, e,
apesar do curto tempo que passara como intruso no céu de Saulo, lembrava com saudosismo
das figuras que conhecera, talvez pelo fato de saber que nunca os veria
novamente. Junto à crescente empatia que sentia por seu ex-colega de faculdade,
crescia em doutor Cícero o medo do que lhe esperava após sua morte, já que o
barman lhe explicara que eram suas atitudes terrenas que determinariam sua
eternidade. Após andar muito, já estava quase desistindo de encontrar Saulo. Foi quando o viu - através
do vidro - sentado sozinho em uma lanchonete, tomando uma cerveja. Entrou e
sentou-se a duas cadeiras de distância dele, que reconheceu a presença do
doutor com um “Bom dia!” e um aceno de cabeça. O carnaval havia acabado há
poucas horas, e o semblante de Saulo lembrava o de uma criança ao final da
festa de aniversário, quando só restam bexigas murchas e metade dum bolo
destroçado sobre a mesa. Doutor Cícero, sentado ali, no momento crucial, começava a
pensar nas consequências de abrir o bico e contar tudo. Foi então ao banheiro
lavar as mãos. Pensou que, se Saulo ainda demorasse alguns dias a morrer, e contasse
aos quatro ventos da ‘profecia de doutor Cícero’, ele acabaria como suspeito da
morte do veterano folião. “De que adianta, enfim, tentar impedir o
destino?” – pensou enquanto secava as mãos, e complementou em voz alta: “E que
destino!”. Por fim, escutou um baque e um grito vindo de dentro da lanchonete,
e, sem nenhum tipo de surpresa, saiu para encontrar Saulo Batista com a cara
enfiada na mesa, entre uma cerveja e um pote de castanha de caju.
Para evitar um linchamento
público, doutor Cícero foi obrigado a deixar a cidade no dia seguinte ao
funeral. O jornal local estampara - na primeira página - uma foto do enterro em que aparecia, com o
texto: “O evento da morte de Saulo Batista foi chorado por toda a cidade com
pesar. Família e amigos do ilustre morador lamentaram seu falecimento. Exceto
por outro ilustre morador - doutor Cícero Ramos - que permaneceu com um largo sorriso
no rosto, desde o velório até o momento em que baixaram o caixão”.