O cartão postal - que maldição - não serve a nada.

O verso da foto não serve à prosa.

Literatura d’um parágrafo; o resumo da vez que não pode ser resumida.

Meio a meio, o endereço e a vida.

Escrever ao singular, sabendo que as palavras serão públicas. Quem respeita a privacidade d’um cartão postal?

Ninguém. Mais fácil seria publicar o amor num jornal.

Escrever na parede a saudade - pra qual não bastaria um livro - muralha da China.

Lido e relido, um epítome de entranhas.

E, no fim, a que restam as distantes palavras derramadas à tinta, senão que marquem a página d’um livro, ou forrem uma gaveta, se muito.

É pouco.

Mas valem, afinal, o calafrio de quem abre a caixa do correio.

De quem encontra em meio às cartas, o amor pelo meio.






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Sua primeira memória é de quando tinha seis anos de idade.

É a memória do apartamento de sua avó, que ficava a duas quadras do apartamento de seus pais. Era um apartamento alugado que cheirava a folhas de plantas, visto que ficava no segundo andar, e de frente para a copa das árvores do jardim. As paredes eram cobertas de quadros abstratos que ele não entendia. Cores, rabiscos e formas geométricas das mais diversas, pintadas à tinta de formas confusas e incompreensíveis sobre telas. Fora os quadros, era um apartamento sóbrio e comum, no qual ele passava quase todas as tardes da semana ao voltar da escola, até que sua mãe viesse buscá-lo às quatro da tarde.

Entre o farto almoço e a hora de ir embora, fazia sua lição de casa debruçado sobre uma antiga escrivaninha cheia de ornamentos em madeira que ficava no canto da sala, enquanto sua avó assistia à televisão em alto volume a poucos metros de distância. Ele se lembra de como era difícil se concentrar na lição com aquele barulho de programas de auditório, e de como o sol claro entrava pela janela atravessando as copas das árvores no meio da tarde, contrastando com a madeira escura da escrivaninha.

Sua segunda memória mais antiga é de seus pais.

Ele se recorda de cada vestido que sua mãe, que trabalhava como secretária, usava. Todo dia, quando ele entrava na cozinha pra tomar o café da manhã antes da escola, ela estava usando um vestido de cor diferente, de acordo com o dia da semana. Na segunda-feira era laranja, na terça-feira era verde, e assim por diante. Sábados eram amarelos. Na frente do bolso do vestido, ia preso um crachá com uma foto 3x4 de seu rosto e seu nome escrito logo abaixo. Às vezes ela se esquecia de tirá-lo ao chegar em casa, e, passada a pressa de preparar o jantar, acabava adormecida no sofá tarde da noite com o crachá ainda preso ao peito.

Seu pai era supervisor de obras, e usava um uniforme igual todos os dias. Era ele quem o levava à escola de manhã, em uma Parati azul-clara com o rádio ligado no canal de notícias. Recorda-se especialmente da velocidade com a qual o locutor da rádio falava, e como usava palavras complicadas, as quais ele ainda não entendia. Às vezes, seu pai ficava furioso com uma notícia e falava algo, sem tirar as mãos do volante ou os olhos da rua, e em resposta ao pai, ele concordava veementemente com a cabeça. Achava interessante a forma como seu pai lhe tratava, de igual para igual, pois todas as outras pessoas que havia conhecido em sua ainda curta vida o tratavam como criança. Não era raro também que seu pai risse de algo que o locutor de rádio havia dito, e ele o acompanhava naquele riso mesmo sem saber do que se tratava, de tão contagiosa que era a risada.

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