um dia acordou sobressaltado.
não mais sabia
se os olhos ainda viam. sem
sentir o coração bater, não sentia dor,
nem medo, nem nada. olhava para o criado
mudo, mas não escutava o despertador.
levantou o corpo, apoiado nas mãos sem
músculos, finos gravetos que afundaram na cama.
a escuridão às vezes engana,
mas sentiu que não era seu corpo que levantava naquela segunda-feira.
sua mente não se lembrava de como era estar vivo. não sentia nada a não ser um torpor, uma aflição cega
que vinha do fato de que não fazia diferença se tivesse ou não levantado, salvo por lhe descontarem o salário.
conseguiu ficar de pé, mas não mantinha o equilíbrio. na escuridão latente, cambaleou e deu um passo à frente.
acendeu a luz e se viu no
reflexo da janela fechada – era ele mesmo ali – mas algo lhe faltava: carne, corpo,
órgãos
vitais, onde os havia
deixado? tinha que sair em duas horas, tinha uma rotina para cumprir, e não iria
naquele estado.
olhou pro monte de ossos que
virara, e não sabia se aquilo era sonho ou realidade, mas já estava ficando
tarde. e então
ele pensou em suas
obrigações. pegou a roupa na cadeira. nem morto ele estava, só virara uma
caveira. bateu três vezes
na madeira. que aquilo acabasse. era um grande absurdo, já tinha acordado de muitas formas,
mas aquilo superava tudo.
botou a sua calça, mas o cinto não fechou na
sua cintura.
os sapatos, a mesma coisa. não ficavam em
seus pés.
improvisou de todo jeito, cortou metros de atadura,
enrolou no corpo inteiro. os ossos ganharam
forma e finalmente
conseguiu botar as roupas todas. só não conseguiu mudar o seu rosto.
com desgosto viu no espelho,
ainda era caveira. mas se sentia bem, e ignorou.
saiu pela porta tentando conter o som dos ossos que batiam,
a cada passo
sacudiam,
sob a roupa larga e desajeitada. ele
era um esqueleto, mas andava com muita discrição.
pensou que podia não ser nada.
era coisa da sua cabeça, e, após sua rotina diária,
provavelmente já estaria normal
e cheio de carne, e o mais
importante, seus órgãos vitais. sem o cérebro,
acreditava ele, éramos como animais.
chegou enfim ao seu
escritório. entrou despercebido. ficaria só lá
hoje, sem sair, pois podia ser despedido.
se seu chefe percebesse que
era um cadáver ambulante,
se visse seu semblante, sem olhos,
sem nariz, e sem lábios,
antes de gritar, lhe demitiria com
justa causa num instante.
a secretária forçou a porta,
tentando em
vão entrar, pois ele a havia trancado,
e quando tentou gritar para ela que hoje não queria ser importunado,
a voz não saiu. saiu um grunhido tão estridente, de terror dantesco, que
parecia com latidos de cães
abafados pelo som de móveis sendo arrastados.
sentou no canto, pensando se
poderia falar com alguém, e como falar.
não havia ninguém com quem tivesse coragem de assim conversar.
aquilo havia durado muito
tempo, precisava receber tratamento.
não tinha muito como sair dali, nem
como ficar, afinal não era mais gente
. era um totem de osso com dente.
tal qual
era, não tava nada bom.
daí, por baixo da porta ele viu
uma carta que ali entrou muito sutil.
ele abriu e leu. a carta
dizia em uma linha: amo você.
não precisou ler de novo para sentir o peito inchar.
seu corpo esquentou. era a letra de sua secretária.
o seu sangue voltou, e aquela
situação precária,
com aquele ato, finalmente
acabou.
a escuridão às vezes engana, mas sentiu que não era seu corpo que levantava naquela segunda-feira.
sua mente não se lembrava de como era estar vivo. não sentia nada a não ser um torpor, uma aflição cega
que vinha do fato de que não fazia diferença se tivesse ou não levantado, salvo por lhe descontarem o salário.
conseguiu ficar de pé, mas não mantinha o equilíbrio. na escuridão latente, cambaleou e deu um passo à frente.
acendeu a luz e se viu no reflexo da janela fechada – era ele mesmo ali – mas algo lhe faltava: carne, corpo, órgãos
com desgosto viu no espelho, ainda era caveira. mas se sentia bem, e ignorou.
não havia ninguém com quem tivesse coragem de assim conversar.
como ficar, afinal não era mais gente
não precisou ler de novo para sentir o peito inchar.
com aquele ato, finalmente acabou.