Escrever sobre o amor...
Escrever sobre o mar...
Que vontade eu tenho
De tudo plagiar!





Quando o trem que margeia o Rio Pinheiros encerra suas atividades diárias na cidade de São Paulo, pelo período da meia-noite às quatro da manhã, o rio é envolto em escuridão. Salvo pelo reflexo da lua e de alguns prédios em suas águas turvas, e pelo som dos carros que passam alheios à sua existência nas vias marginais, o rio é pura solidão. Solidão que é acentuada nas madrugadas de lua encoberta, em que o rio está completamente escondido nas sombras. Na penumbra pela qual passa uma das figuras mais intrigantes e obscuras da metrópole.

Desconhecido pela grande maioria da população, negado e chamado de lenda pela prefeitura, e segredo entre os funcionários das entidades que trabalham em vão para despoluir o rio, um ser de aparência incomum passa por aquelas águas, sempre nas noites mais escuras do ano. Passa silencioso, remando uma antiga canoa indígena. Algo um tanto peculiar para um rio poluído como é o Rio Pinheiros - um rio morto.

Esse canoeiro do Rio Pinheiros - não raramente - é confundido com os mendigos ou catadores de lixo, que arriscam suas vidas atrás de garrafas pet no rio. Poucas pessoas o viram e conseguem descrevê-lo com exatidão, em vista da total escuridão, caligem, e clima oculto do encontro. Um encontro um tanto esparso, em vista do pouco interesse das pessoas no rio em noites sem lua.

Os relatos mais acurados - de algumas poucas pessoas - o descrevem como um homem de pele escura e cabelos longos, magro, e com mais de dois metros de altura. Dizem que rema uma canoa de madeira crua, sem nenhum tipo de pintura ou decoração. O homem rema em pé, e está sempre completamente nu, salvo por uma pintura corporal vermelha, que se confunde com a cor escura de sua pele. A pintura começa entre o umbigo e o peito, e preenche seus braços e sua cabeça completamente em vermelho. Presa à ponta superior de seu remo, há uma cabaça seca, decorada com poucas penas amarelas. As raras pessoas que dizem já terem visto seus olhos, relatam que são olhos completamente brancos e sem pupila. Brilhantes como pérolas. Entretanto, todos que dizem tê-lo feito, afirmam veementemente que ele não é cego. Pelo contrário, parece poder ver mais do que os olhos comuns conseguem.

Alguns especialistas em história e cultura nacional, quando consultados sobre o assunto há poucos anos, chegaram - por incrível que pareça - a uma conclusão comum. Pela descrição da aparência física e da pintura corporal vermelha na parte superior do corpo, afirmaram tratar-se de um xamã – ou pajé – Mbyá-Guarani ou Nhandevas-Guarani. Mas, a identificação crucial como xamã foi feita pela cabaça seca com penas amarelas, presa ao topo de seu remo. Essa cabaça seca – disseram - é na verdade um maracá, tradicional chocalho indígena utilizado em festas e cerimônias religiosas. Os olhos totalmente brancos não tiveram explicação, entretanto. Disseram ser possível que fosse alguma doença ligada à cegueira, apesar dos relatos adversos. Ao finalizarem a análise dos relatos, todos especialistas também entraram em consenso sobre outra coisa: um xamã de associação Guarani remando no Rio Pinheiros em tempos atuais, durante madrugadas de lua encoberta, não era nada mais do que uma lenda ou crendice popular.

No dia em que o vi, eu estava sobre a ponte Santo Dias da Silva, e eram duas horas da manhã de uma quinta-feira do mês de julho. Ano corrente. Não costumo prestar atenção ao rio, ainda mais numa hora dessas, apressado para chegar em casa. Mas, ao olhar além da grade que separa a calçada da queda ao rio, o que vi na escuridão foi um vulto deslizando exatamente abaixo de mim - próximo à margem direita – seguindo o fluxo natural do rio no sentido centro. A noite escura não permitiu que eu visse nada além de sua sombra. Quando os poucos carros que passavam pela ponte sumiram na neblina, e a noite ficou em total silêncio, pude escutar o som de um chocalho. O maracá. Tocado em um ritmo lento, porém mais acelerado do que as remadas, era como se o condutor da canoa não estivesse simplesmente remando e tocando, e sim ritmando minuciosamente aquela passagem como num ritual. Um ritual soturno e hipnótico. Duas palavras chegaram fracas aos meus ouvidos, trazidas pelo vento, logo antes de duas motos passarem barulhentas pela ponte: ‘eju ápe’.

Senti meu corpo gelar mais ainda na noite fria, quando olhei para a margem do rio, e vi capivaras acompanhando a canoa em um enorme bando, completamente atentas àquela sombra de estatura alta que passava na escuridão. Já havia visto dezenas de capivaras às margens do Rio Pinheiros, mas nunca havia visto tamanha quantidade delas juntas. E de forma tão uniforme e organizada, hipnotizadas pelo fraco som do maracá. A grande maioria era de animais adultos, mas havia alguns filhotes também. Andavam como uma gigantesca massa viva e marrom-brilhante - entre o rio e os trilhos do trem - cobrindo completamente a ciclofaixa vermelha e a grama de verde apagado pela noite.

Apressei meus passos sobre a ponte, sobressaltado com aquela visão. E aquele frio que havia gelado o meu corpo há alguns segundos, simplesmente despareceu. Não passou regularmente, aquecido pelo movimento rápido das minhas pernas, ou ao sair da linha do vento, mas de uma vez só. Repentinamente. Decidi apertar o ritmo da caminhada ainda mais, sem olhar para trás, e, ao chegar em casa, guardei aquela experiência somente para mim.

Algum tempo depois, enquanto fazia pesquisas na internet, descobri um estudo de 1988 sobre uma tribo Guarani que viveu na região da Serra do Mar - mais especificamente no norte do estado de São Paulo - e que migrou do interior em direção ao litoral em uma busca pela Terra sem Mal (Yvi Mara Ey). Essa tribo, já extinta, acreditava que as almas dos humanos cujas vidas terminavam de forma violenta, atordoadas ao não encontrarem escape do plano terreno, reencarnavam em corpos de animais. E, antigamente, para evitar que isso ocorresse, os índios mortos em batalha - ou de qualquer outra forma violenta - eram enterrados próximos a um rio, de forma que suas almas pudessem escapar pelas águas subterrâneas. O rio era uma passagem sagrada, que libertava essas almas torturadas para seguirem seus caminhos além-terra.

O que flutua no Rio Pinheiros, em São Paulo, no ano corrente, nas noites em que a escuridão quase não permite a visão, não é somente um homem remando uma canoa. O misterioso índio-xamã que rema sua canoa oculto pelas sombras, vindo de algum lugar onde provavelmente vive recluso como ermitão, ou então em um quilombo ou tribo perdida na imensidão de 315.000 hectares da mata atlântica, atende a um propósito. Ele vem - talvez por um fino rio ligado à Represa Guarapiranga ou Billings - atender a um chamado tão antigo quanto a própria vida humana. Pois ali, naquele frio que repentinamente gelou meu corpo naquela madrugada de julho, envolto na neblina da ponte Santo Dias da Silva, estavam as almas de motociclistas atropelados, crianças assassinadas, e suicidas, entre outras pobres almas acidentadas que ainda ecoavam o som das sirenes atrasadas.

Busquei mais respostas. Os índios da aldeia Krukutu, localizada no extremo sul do bairro de Parelheiros, também na região da Serra do Mar – e que tem associação Guarani Nhe’e Porã -, quando questionados sobre o assunto, disseram desconhecer a questão de qualquer pajé ou xamã. Mas a cacique, uma senhora com seus oitenta anos de idade, explicou num tom sério e honesto que o rio é poluído a partir do momento em que entra na cidade, pois é sujo pelas almas de seus moradores. Moradores que não respeitam suas águas sagradas. Segundo ela, a água do rio nasce em reservas indígenas milenares. Emana pura da terra, e se mistura com outras águas enquanto corre pelo leito do Rio Guarapiranga e Rio Grande até formar o Rio Pinheiros. Este, por sua vez, entra na cidade com suas águas ainda límpidas, mas é infectado pela impureza e maldade das almas dos homens brancos, que buscam no rio um caminho para se libertarem. Então suas águas são profanadas e o rio morre, e segue morto até o seu destino final - o Rio Tietê. Por fim, as almas impuras permanecem perdidas às suas margens. Sim, algumas vezes – disse ela, em resposta à minha pergunta - na forma de animais.

A única forma de salvar o rio - complementou a cacique - não é através da prefeitura, nem através de organizações não governamentais. Somente quando o homem branco purificar sua alma, e mostrar o seu respeito às águas sagradas, o ambiente voltará ao seu equilíbrio natural. Então, as almas torturadas da cidade poderão voltar a ser levadas para o outro mundo, como aconteceu por milhares de anos antes da civilização.

Porém, enquanto a cultura da cacique não tem previsão de gerar frutos, continuaremos a ter uma visita noturna rara e imperceptível, nos dias mais escuros do ano. Algo que poucos tiveram ou terão a chance de presenciar, e cuja própria existência continuará obscura à maioria da população. De forma serena, o xamã continuará vindo à cidade no silêncio e escuridão das noites mais negras, e, remando lentamente pelo leito do rio impuro, tocará seu maracá. Olhará demoradamente dentro dos corpos dos animais às margens do Rio Pinheiros, e libertará as almas presas ao campo terreno em corpos de capivara. Pobres almas temerosas, que deixarão seus corpos em sofrimento. Almas que profanaram o rio em suas tentativas de libertação.

É um trabalho milenar, feito na penumbra de uma São Paulo que dorme profundamente; e que quando acorda, nem percebe as almas perdidas que foram salvas durante a madrugada.





A vida é assim;
num dia ravioli,
no outro, nissin.




são paulo é cambalear                                                
         entre uma praça                                                
   e uma ogiva nuclear                                                




Não precisa
Ser tão precisa
A mente
Nos mente
Precisamente