foi quando ela atingiu
o espaço
sideral, longe quilômetros
dos
liquidificadores, patos e escavadeiras,
que lhe veio a
ideia de que tudo - nos armários,
porta-retratos,
geladeiras, cofres, roupa nas cadeiras
- tudo isso que
se tem, vale tanto quanto aquilo que falta.
não voltaria
tão cedo a ter alguma coisa, pensou ela, tendo
o nada à sua
frente, muito maior e imponente do que o tudo.
enquanto ela
cambaleava entre os planetas, tentava, contudo,
encontrar
alguma gravidade ou algum ponto de apoio onde fosse
possível
descansar. a viagem fora longa, e lhe parecia que tempo
e mente já não se entendiam mais. e percebeu que
desaprendera
fazer coisas
que antes fazia sem problemas. ela esquecera como
ler o relógio
de pulso, coisa tida lá na terra como corriqueira,
bobeira do
dia-a-dia. então, lhe veio a segunda reflexão, de
que tudo isso o
que se sabe, vale tanto quanto o que se
desconhece. e se às vezes, devido à distância de um
milhão de
anos-luz, ela se esquece, é porque
agora não
precisa mais saber tomar banho,
abrir uma
porta, fritar um bife ou
preencher um
cheque.
olhou pros
lados
e se sentiu
feliz de saber que já
não havia a
menor possibilidade de voltar.
aquela era uma
viagem sem volta, sem remorso e
nenhum medo, e
não havia nela o mais mínimo desejo
de voltar a ver
gente, de dormir abraçada numa noite fria,
de comer
feijoada numa tarde quente, de botar as mãos na pia
e ouvir o
barulho da água, de ouvir mais uma vez o disco do jorge
ben e se
perguntar mais de uma vez se eram os deuses astronautas.
ela não ia mais
abrir nenhum vidro de palmito, nem falar ao telefone,
nem comemorar
natal, nem visitar a tia de carro, nem pular o carnaval.
ela estava serena com a ideia de flutuar eternamente,
de abandonar seu corpo na terra enquanto a alma deslizava
entre as
estrelas. ela agora pensava na sua carne como um ponto num bordado, ou um furo
numa peneira. só mais um corpo enfim desocupado.
por um instante
tentou lembrar-se de como era mesmo um corpo, mas sua mente formou uma imagem de
algo parecido com uma estante.
ela já
imaginava que muito em breve sua mente começaria a lhe apagar tudo o que não
fosse importante.
não sentia pena
dos que ficaram, sentia, porém, pena dos que não foram,
e que continuaram
poros, cabelos e dentes. cabeça, tronco e membros.
percebeu que
mesmo aquela ideia se esvaía, sumia na escuridão. não
se lembrava
mais de como era uma genitália e qual a cor do leite, e
logo esquecia o
significado das palavras que acabava de pensar.
enquanto virava
nada, lhe veio a terceira revelação: de que
não se deve dar
nome a nada, pois palavras são prisão.
e tudo se
apagou então. todo significado sumira
e não haviam
mais formas, cores ou som,
e até mesmo o
nada e o vazio
se revelaram
ilusão.
no segundo
em que ela
virou
planeta, sentiu
todo
o amor do
universo.
só isso lhe restou
do mundo.