Amanda caminhava apressada pela calçada esburacada em direção ao trabalho. Com os pés apertados em sapatos novos, pulava as faixas de grama na calçada. Para cada metro de concreto havia uma faixa de grama de dez centímetros. Em passos largos e certeiros, de quem já conhecia aquelas calçadas há tempos, ela seguia. Certa de tudo. Pois vale informar ao leitor que, como todas as pessoas, Amanda tinha muitas certezas na vida. Assim como você e eu temos a absoluta certeza de quem somos, e de nossas verdades.

A definição de verdade de Amanda – pois verdade é um conceito subjetivo – era aquilo que ela tinha conhecimento ser real. Bastasse não estar oculto ao seu conhecimento, e ser um fato concreto, e era a verdade. A verdade era algo exposto. Quando adolescente, para evitar que outras pessoas soubessem seus segredos, ela teve um diário. Naquelas páginas estava a verdade de Amanda. Verdade somente para ela, trancada a chave e escondida dentro de uma antiga lata de chocolates. Verdade jogada fora aos vinte e dois anos, junto com parte de seus cadernos escolares antigos e outras anotações tidas como desimportantes.

Bem, Amanda continuava a andar pela calçada, costurando por entre os transeuntes e mantendo ritmo contínuo, até que finalmente chegou ao seu destino. Seu destino era um prédio de vidro de vinte e dois andares, dos quais ela conhecia somente um: o de número três, onde trabalhava. Ao sentar-se à mesa de trabalho, o telefone de Amanda tocou. Ela tinha em sua mesa, além do telefone já mencionado, um monitor de computador com um teclado, uma pequena estante de dois andares com documentos empilhados, e um porta-lápis que havia saído de sua função original para agora abrigar além de lápis, elásticos, clipes, canetas, e um bloco de notas. Amanda atendeu ao telefone. Sua própria voz ecoou do outro lado da linha: “Você nunca vai amar ninguém como amou o Pedro. Seu marido é apenas a opção mais segura. Você tem medo de ficar sozinha”. E desligou.

Mesmo após a ligação perder a linha, Amanda permaneceu segurando o fone contra a orelha. Suas mãos formigavam, e ela teve uma repentina sensação de fome, de vazio. Ela havia reconhecido sua própria voz do outro lado da linha, mas aquilo não era o mais estranho. Ela havia reconhecido aquelas palavras. Elas estavam guardadas num lugar profundo. Profundo o suficiente para que a rotina se empilhasse em cima delas, como uma roupa que cai atrás da cômoda e com o passar do tempo simplesmente esquecemos que um dia existiu. Aquela afirmação - pensou Amanda - não era verdade. Afinal, a verdade de Amanda se construía através de coisas concretas, através de coisas palpáveis e que fossem do conhecimento dela. E aquilo não era de seu conhecimento, decidiu ela. Amanda botou o telefone de volta no gancho, e, assim como as afirmações escritas em seu diário descartado anos atrás, aquilo deixou de ser verdade naquele mesmo instante.

A hora do almoço no prédio onde Amanda trabalhava - do período do meio-dia à uma hora da tarde -, era um momento complicado de se pegar o elevador. E nesse dia não foi diferente. Amanda estava espremida num elevador onde era a única mulher no meio de uma dúzia de homens engravatados. Mal podia mover os braços. No momento em que o elevador chegou ao andar térreo, diversos braços seguraram a porta em cavalheirismo, para que ela pudesse descer antes. E assim ela o fez, sentindo-se como se saísse de uma caverna de ternos. E logo notou que no seu celular havia uma chamada perdida da irmã. Provavelmente ela havia ligado enquanto Amanda estava no elevador.

Já na rua, o celular de Amanda tocou novamente. Ela atendeu, e novamente, antes que pudesse dizer qualquer coisa, ouviu sua própria voz do outro lado da linha: “Você torce secretamente pelo fracasso de sua irmã. No fundo, você gostou quando ela perdeu o emprego”. A mesma sensação de antes atingiu Amanda. Um vazio e um formigamento nas mãos. Ela olhou a tela do celular, mas não constava nenhum número. Passou o almoço com aquela sensação estranha. Parecia que a comida não preenchia seu corpo, e sentia-se como se tivesse perdido controle sobre algo, como se tivessem lhe tirado algo de muito importante. Porém não conseguia identificar o quê. Pegou novamente o celular e verificou as ligações recebidas. A última ligação registrada era a ligação não atendida de sua irmã. Essa constatação voltou a preencher seu corpo, e, em poucos instantes, Amanda já se sentia normal.

A tarde transcorreu tranquilamente. Ela voltou à sua mesa de trabalho, e continuou a redigir o relatório que havia começado pela manhã. Como analista do departamento de compras de uma indústria de cosméticos, ela trabalhava diretamente com os dados de aquisição de matéria-prima. Ela analisava cada entrada no sistema, e conferia com a nota fiscal e com o inventário que lhe era enviado pelo almoxarifado toda manhã. Se algum material não constava na sua checagem, ele simplesmente não existia. Para que existisse, a matéria-prima precisava ter uma entrada no sistema, uma nota fiscal, e estar listada no relatório do almoxarifado. Certa vez, uma caixa de tampas de esmalte chegou sem nota fiscal. Por instrução de Amanda, foi estocada no fundo do armazém - atrás das caixas com material para descarte -, até que a nota fiscal chegasse e fosse dada entrada no sistema. A nota fiscal nunca chegou. Aquela caixa nunca existiu.

Logo que o relógio - aliás, esse era um belo relógio digital pendurado por cabos de aço ao teto, no meio de um escritório repleto de mesas brancas, tal qual um lustre pendurado em um salão de baile - registrou seis horas da tarde, Amanda levantou-se, e logo estava andando como de manhã pelas calçadas esburacadas, e pulando as faixas de grama com seus pés apertados nos sapatos novos. O dia terminava laranja no horizonte, e trazia uma sensação de paz para ela, lhe trazia um sentimento de que a vida era maior do que aquilo, do que aquela calçada, do que aquele emprego. Ela fechou os olhos e deu alguns passos às cegas, confiando que a calçada estaria lá exatamente como nas outras centenas de vezes em que andou sobre ela.

Amanda chegou ao ponto de ônibus, que nesta hora da tarde estava lotado. Porém, logo no próximo ônibus que parou, todas as pessoas que aguardavam no ponto entraram. E ela ficou sozinha ali, esperando que o seu ônibus chegasse também. O orelhão ao lado do ponto começou a tocar. Ela ignorou. Não havia ninguém por perto. Poucos carros passavam pela rua, uma rua tranquila e arborizada, onde de dia ficavam restaurantes comerciais que àquela hora já estavam fechados. O orelhão insistiu por alguns minutos, até que finalmente Amanda pegou o fone e o encostou à orelha. “Você não acredita em Deus, sua fé é uma farsa. Você vai à igreja simplesmente por ...”. Amanda desligou. Antes que ela mesma pudesse terminar de falar do outro lado da linha. Aquilo não era verdade. Ela tinha uma bíblia na sua bolsa para provar. Aquilo não era verdade, pois havia pelo menos umas quarenta pessoas que a viam na igreja todo domingo, rezando para Deus, e praticando sua fé.

Poucos minutos depois, quando Amanda entrou no ônibus que ia da região onde trabalhava até a região próxima a sua casa, ela já nem pensava mais no telefonema. Ela havia desenvolvido algo semelhante ao duplipensamento* de George Orwell, em 1984. Ela conseguia sobrepor àqueles fatos estranhos, àquelas ligações que recebeu dela mesma, o seu pensamento do que era a verdade. E o que ocorrera hoje - sem que ela precisasse repetir mais nenhuma vez em sua mente - não era a verdade. Qualquer outra pessoa teria enlouquecido ao escutar sua própria voz ao telefone, ao se escutar fazendo afirmações dessa gravidade, ainda mais sendo essas afirmações de caráter confessional. Qualquer pessoa teria dúvidas. Mas Amanda estava sentada no banco do ônibus, digitando no celular uma mensagem de conforto para sua irmã que havia perdido o emprego.

O ponto de ônibus onde ela descia ficava na frente de uma padaria enorme e recém-inaugurada, e Amanda entrou para comprar pão para ela e para o seu marido, como fazia rotineiramente. Encontrou o marido na fila do caixa, por coincidência. Os dois se cumprimentaram com um beijo discreto, conversaram sobre os seus respectivos dias no caminho de casa, e, mais tarde, já no quarto, trocaram carícias e fizeram sexo. Antes de dormir, Amanda disse ao marido que ela o amava mais do que tudo na vida. Isso era verdade - e ela não precisava nem pensar a respeito disso -, pois essas eram as palavras que haviam saído de sua boca e entrado no ouvido de seu marido. Simples assim. Amanda dormiu profundamente. Nada de estranho havia acontecido naquele dia, que pudesse tirar o seu sono.



* Duplipensar, segundo o próprio George Orwell, em 1984: Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da Democracia e que o Partido era o guardião da Democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar.









De tanta pomba que levei
Já nem papagaio mais
Me corujo; sigo em frente
Uirapuru nos seringais

Quem sabiá um dia de sol
Revelará que esse pavão
Brioso de terno e gaivota
Arara muito sem razão

Só quero-quero é enfim
Andorinhar do meu jeito
Seja lento ou albatroz
Mas canário e satisfeito

Essa gralha que codorna
Caracará em alguns anos
Esqueço então o que curió;
Pintassilgo os meus planos

Bem-te-vi à porta aberta
E senti um pardal de dor
Tiê as malas do armário
E disse ao joão-de-barro: seja o que beija-flor.







Tem um menino na porta do mercado
Vendendo salgados
E é sempre o mesmo menino
O menino já está marcado

O menino está na porta do mercado,
Ou a porta do mercado no menino?
O menino vende os salgados,
Ou os salgados vendem o menino?

Pouco importa;
Sempre que passo, já está marcado:
Tem um menino vendendo salgados
Na porta do mercado

O menino já está marcado,
Ou o menino já está mercado?








o caminho entre a taça e a goela
é tão antigo quanto o pincel e a tela
tão comum quanto a capela e o padre
é nesse caminho que o mundo se apaga
e é no vinho tinto que o homem esquece
que a vida é fria, e um bom gole aquece
um brinde merece, em nome do mesmo
que mata a sede e embriaga o medo
acelera a noite e segura a pressa
na fauce regada em fino tinto
entre a uva e o prazer há
um tempo solto, um
nó na garganta
uma
f
e
r
m
e
n
t
a
ç
ã
o
da existência humana








Todas sextas-feiras
Agarram lembranças
De mais pacatas danças
De sextas-feiras passadas
Em outras semanas
Vagas

Vinde ó sextas-feiras
Brutas! Que engolem
Dias e ruas
E que vêm como padres
Redimindo os vira-latas
As prostitutas
E os bêbados inveterados

Vinde ó sextas-feiras
Por entre trôpegas passadas
Para carteiros e turistas
Para empresários,
Paramédicos
Para moças comportadas
Para mesas nas calçadas
Arquibancadas

Todas sextas-feiras
Engrandecem os poemas
Emudecem os problemas
De sextas-feiras passadas
Em outras semanas
Vagas






Nessa rua
Eu sempre pássaro
Uma pata atrás da outra
Logo ao uivar do dia

Nesse frio
Vou mais miado
Bico mais ressabiado
Com a cidade alce vazia

Fim de tarde
É sempre pato
Assim que o relógio late
Volto lobo à minha asa

Urso um som
Logo que chego
E me lagarto no sossego
De que outro dia irá rugir








Alberto, segurando um tubo de desodorante e um pacote de pão, esperava na fila comum do supermercado. Uma senhora ao seu lado tentava convencê-lo, em vão, a usar o caixa-rápido. Mas ele tinha todo o tempo do mundo entre o meio-dia e a uma hora da tarde. Quase todo dia era a mesma coisa.  Após deglutir o almoço, punha-se a caminhar até o mercado. Pegava uma ou duas coisas da sua lista de compras, e ia para a fila do caixa de número seis. Sempre a fila do caixa de número seis.

Sentada ao lado de um monitor de computador antigo, enfiada num avental surrado e demasiado grande, estava ela. Nunca faltava. Sentada de forma desajeitada na cadeira, ela passava os produtos pelo leitor de código de barras num ritmo único. Cada produto era manuseado de forma que chegava ao leitor na mesma fração de segundos, de forma inconscientemente calculada. E mesmo quando algum produto mais rebelde a atrapalhava, ela digitava o código de barras no teclado com a mesma precisão rítmica.

Alberto já conhecia tudo isso de cor e salteado, pois já estivera naquela fila centenas de vezes. Por vez ou outra, fechava os olhos e deixava aqueles sons o hipnotizarem. E junto à hipnose, entrava em devaneios. Devaneios nos quais ele e ela estavam a sós no supermercado completamente vazio. Não havia outras pessoas, não havia prateleiras, não havia outros caixas, nem nada além dele em pé na fila vazia, observando-a, e ela passando os produtos no leitor de código de barras, naquela valsa rotineira e automática.

A fila avançava, e Alberto chegava cada vez mais próximo ao caixa. Mais próximo dela. Já podia ler seu crachá preso ao avental, no qual letras grosseiras soletravam seu delicado nome: Ana. Podia também ver os detalhes de suas mãos pequenas manuseando os produtos, e seus cabelos longos presos em um rabo-de-cavalo que pousava sobre os ombros. Acima de tudo, Alberto podia sentir seu próprio coração batendo no ritmo do leitor de código de barras. E podia ouvir a voz dela. Nota fiscal paulista? Pode inserir o cartão. O cliente ia embora sem lhe dar muita atenção, e mais produtos passavam pelo leitor. E o coração de Alberto acompanhava: tum-tum-tum-BIP-tum-tum-tum-BIP-tum-tum-tum-BIP.

Ela não olhava pra cima e nem para os lados. Na realidade, aparentava estar hipnotizada assim como Alberto naquela rotina, e as pessoas que ela atendia eram como os produtos que passava no leitor. Do outro lado da esteira, em pé, os clientes ignoravam completamente o espetáculo de beleza e precisão que era Ana, e fitavam o monitor em busca de um erro do supermercado. Na etiqueta estava escrito R$ 4,96, moça. Ana então apertava um botão, e a pausa gerada em nada amenizava o coração de Alberto. Somente prejudicava o seu samba, que, no silêncio da cuíca, prosseguia firme no surdo: tum-tum-tum-tum-tum-tum.

Um homem de patins aproxima-se do caixa, e sai deslizando em disparada com uma lata de extrato de tomate em mãos. No caixa, o motivo de Alberto ter vindo ao supermercado olhava para o chão, olhava para as unhas, olhava para os produtos que eram entulhados por uma adiposa senhora na ponta da esteira. E ele olhava para ela. Olhava o homem de patins - outro bailarino da rotina, diga-se de passagem – voltar e resolver em segundos o impasse do extrato de tomate. Alberto queria ser ele, debruçado sobre os ombros dela, digitando algo no teclado em que ela - vez por outra - solava.

A fila do caixa já se estendia pelos corredores e fazia curva, e vez por outra Alberto sentia-se observado com estranheza. A cinco metros dele, a fila do caixa-rápido avançava a passos largos. A senhora na fila ao lado – que havia tentado convencê-lo há pouco - comentava algo com um senhor sobre o tempo de espera, e Alberto desconfiava que fazia parte de suas reclamações. Mas ele ignorava. Permaneceria ali o tempo que fosse necessário para poder ficar de frente à atendente do caixa de número seis. Ela não sabia, mas ela era como um fogo que o aquecia por dentro. A cada passo que Alberto dava em direção ao caixa, mais ele sentia-se como um balão prestes a levantar voo.

Alberto estava de frente para ela. E ela estava de frente para um tubo de desodorante e um pacote de pão. Nota fiscal paulista?-tum-tum-tum-Não, obrigado.-tum-tum-tum-BIP-tum-tum-tum-BIP-tum-tum-tum-Débito ou crédito?-tum-tum-tum-Débito.-tum-tum-tum-Pode digitar a senha.-tum-tum-tum. Enquanto Alberto ensacava suas compras, repentinamente corou com a ideia de que fosse possível que escutassem seu coração do lado de fora de seu corpo. Ana lhe estendeu a pequena mão segurando a nota fiscal, porém Alberto não percebeu, e quando ele levantou os olhos, viu que ela olhava diretamente para eles. Tinha uma expressão séria e calma. E olhos brilhantes. Ele agradeceu com a boca completamente seca, e partiu.

Andando a passos rápidos pela calçada, com o coração acalentado voltando ao ritmo normal, Alberto tentava não chegar muito atrasado ao trabalho. Mas já se passavam vinte minutos da uma hora da tarde, e ele foi repreendido pelo seu chefe, que o aguardava para um compromisso. Alberto escutou as queixas pacientemente e justificou-se, sem mentir, dizendo que tinha ido ao supermercado e não havia caixa-rápido nenhum. Deixou, porém, de completar a frase: não havia caixa-rápido nenhum que pudesse acompanhar tão bem as batidas de seu coração.








Já não respondo mais por mim
Fiquei no caminho e o que
Aqui chegou é algo outro
De aparência igual
Porém pouco se assemelha ao original

Entrecortado
Passei trinta anos falando
De boca cheia, dormindo, tossindo
E indo
De um lado ao outro, sem ter alguma certeza

Ando muito (porque é minha natureza)
Todo o resto que faço é falso
Pretensão tola
Uma árvore alta de raiz pequena
Um jogo de cena

É triste ver no que nos tornamos
Depois de trinta anos
Depois de trinta co(r)pos
Depois de trinta horas de sono
Acordar e olhar pela janela:

Tanta ofensa
Tanta pobreza
Tanto carro capotado
Tanta gente doente

Tanto ódio
Tanto medo
Tanta gente mijando na rua
Tanta dor de dente

Tanta fome
Tanta ausência
Tanta gaiola
Tanta alma carente

Tanta multa
Tanta incompreensão
Tanta mordida de cachorro
Tanta dor de gente

Tanta coisa
pra pensar
pra fazer
E eu aqui escrevendo essa porra de poema
E mentindo pra mim mesmo que ficou parecido com Ferreira Gullar






Esse poema é pra ler pelo cu.
É pra entrar pelo reto
Passar pelas vísceras
Como um bolo fecal reverso

É pra ficar de quatro
E abrir bem esse olho pequeno
O verso já conhece o caminho
Pelo cólon e pelo duodeno

E, quando cobertas em suco
Biliar e em muco estomacal
As estrofes chegarem à boca
Sairá rouca pulcra poesia anal









foi quando ela atingiu
o espaço sideral, longe quilômetros
dos liquidificadores, patos  e escavadeiras,
que lhe veio a ideia de que tudo - nos armários,
porta-retratos, geladeiras, cofres, roupa nas cadeiras
- tudo isso que se tem, vale tanto quanto aquilo que falta.
não voltaria tão cedo a ter alguma coisa, pensou ela, tendo
o nada à sua frente, muito maior e imponente do que o tudo.
enquanto ela cambaleava entre os planetas, tentava, contudo,
encontrar alguma gravidade ou algum ponto de apoio onde fosse
possível descansar. a viagem fora longa, e lhe parecia que tempo
 e mente já não se entendiam mais. e percebeu que desaprendera
fazer coisas que antes fazia sem problemas. ela esquecera como
ler o relógio de pulso, coisa tida lá na terra como corriqueira,
bobeira do dia-a-dia. então, lhe veio a segunda reflexão, de
que tudo isso o que se sabe, vale tanto quanto o que se
desconhece. e se às vezes, devido à distância de um
milhão de anos-luz, ela se esquece, é porque
agora não precisa mais saber tomar banho,
abrir uma porta, fritar um bife ou
preencher um cheque.




olhou pros lados
e se sentiu feliz de saber que já
não havia a menor possibilidade de voltar.
aquela era uma viagem sem volta, sem remorso e
nenhum medo, e não havia nela o mais mínimo desejo
de voltar a ver gente, de dormir abraçada numa noite fria,
de comer feijoada numa tarde quente, de botar as mãos na pia
e ouvir o barulho da água, de ouvir mais uma vez o disco do jorge
ben e se perguntar mais de uma vez se eram os deuses astronautas.
ela não ia mais abrir nenhum vidro de palmito, nem falar ao telefone,
nem comemorar natal, nem visitar a tia de carro, nem pular o carnaval.
 ela estava serena com a ideia de flutuar eternamente, de abandonar seu corpo na terra enquanto a alma deslizava
entre as estrelas. ela agora pensava na sua carne como um ponto num bordado, ou um furo numa peneira. só mais um corpo enfim desocupado.
por um instante tentou lembrar-se de como era mesmo um corpo, mas sua mente formou uma imagem de algo parecido com uma estante.
ela já imaginava que muito em breve sua mente começaria a lhe apagar tudo o que não fosse importante.
não sentia pena dos que ficaram, sentia, porém, pena dos que não foram,
e que continuaram poros, cabelos e dentes. cabeça, tronco e membros.
percebeu que mesmo aquela ideia se esvaía, sumia na escuridão. não
se lembrava mais de como era uma genitália e qual a cor do leite, e
logo esquecia o significado das palavras que acabava de pensar.
enquanto virava nada, lhe veio a terceira revelação: de que
não se deve dar nome a nada, pois palavras são prisão.
e tudo se apagou então. todo significado sumira
e não haviam mais formas, cores ou som,
e até mesmo o nada e o vazio
se revelaram ilusão.



no segundo
em que ela virou
planeta, sentiu todo
o amor do universo.
só isso lhe restou
do mundo.









Pedalo
Por um segundo,
Por um metro de vento,
Hipnotizo um para-choque;
Paraliso o tempo.

Sigo lento,
Fito os olhos; vidros,
As peles plásticas, bocas
buzinas, os metais-corações.

Paro;
E amarro o metro
E o segundo de vento,
Amarro-os na grade do prédio,
Ainda quente por dentro.

E sigo lento,
Com meus olhos; vidros,
Minha pele plástica, boca
buzina, meu metal-coração.






Quero viver
Numa casa tranquila
Entre cortinas âmbar
E visitas no chão

Quero viver
Num lugar pequeno o tão
Que me expulse pra rua
Ora de supetão

Quero viver
Num desses dias brandos
Em que o sol entra pela janela
E esquenta o colchão

Quero poder
Tomar uma cerveja à tarde
E queimar os lábios na tua nuca
Antes que o disco acabe

E na manhã seguinte
Deixar que a imaginação
Esfrie o café quente
E traga o pão